O cinema de Abbas Kiarostami
por
Marcelo Miranda Fotos: cenas dos filmes Dez e Gosto de Cereja
miranda@areaweb.com.br
25/04/2005
Nada acontece nos filmes de Abbas Kiarostami. Tudo acontece nos filmes de Abbas Kiarostami. Afirmações paradoxais, mas que definem de forma resumida e certeira o que é, na essência, o tipo de cinema feito por esse diretor iraniano prestigiado, elogiado e premiado. Mas como, num universo atual de filmes pirotecnicamente vazios, como os feitos pelo cinema-lixo de Hollywood, ou de certas produções pseudo-intelectuais e pretensiosas que pipocam nos festivais mundo afora, um cineasta como Kiarostami consegue respeito e reconhecimento?
Para entender um pouco as duas afirmativas do início, é preciso, claro, recorrer aos filmes do diretor. Comecemos pela primeira: nada acontece. Significa quase literalmente isso: Kiarostami é a antítese do grande cinemão dos EUA, fincado na idéia de que os filmes devem contar uma historinha com introdução, desenvolvimento, clímax e conclusão, sem deixar praticamente nada para o próprio espectador, mastigando e engolindo tudo de uma vez. Kiarostami segue caminho inverso. Adepto da não-narratividade, seus filmes tem sempre um ponto de partida, mas jamais um de chegada.
Sua falta de narrativa não é à moda do francês Jean-Luc Godard ou do americano David Lynch, que, cada um à sua forma, embaralham os acontecimentos de seus filmes criando quebra-cabeças por vezes intransponíveis. Nem à de Orson Welles em Cidadão Kane ou Kurosawa em Rashomon, que mostram fatos sob pontos de vistas distintos e nem sempre em ordem cronológica. A narrativa de Abbas Kiarostami é até linear, segue os passos dos personagens, respeita a linha temporal. Simplesmente não há grandes ações ou acontecimentos, não existem momentos de adrenalina, quase não há conflitos a serem resolvidos. As coisas apenas acontecem.
Vejamos, por exemplo, Onde Fica a Casa do Meu Amigo? (1987), primeiro filme a dar notoriedade ao iraniano. Mostra Ahmad, garotinho estudante numa vila pobre de Koker (ao norte de Teerã, capital do país). Sem querer, ele pega o caderno do colega de sala e o leva para casa. Ao se preparar para fazer o dever, percebe o erro e lembra-se de que tal colega já estava em débito com o professor e não poderia mais deixar esquecer de entregar a tarefa. Culpado por poder prejudicar o amiguinho, Ahmad sai sozinho à procura da casa do dono do caderno, sem fazer idéia de onde ele mora e contra a vontade da mãe. Se num filme "convencional" ele passaria por uma série de perigos, surpresas e aprenderia uma bela lição de moral, aqui Ahmad não faz nada a não ser bater de porta em porta procurando a morada do colega. Encontra outras crianças, faz amizade com um velho, sobe e desce os tortuosos caminhos da região.
Em Vida e Nada Mais (E a Vida Continua) (1992), Kiarostami volta a Koker para registrar as conseqüências de um terremoto que dizimou parte da população. O filme trata de um diretor de cinema (alter-ego do próprio Abbas) retornando ao local das filmagens de Onde Fica a Casa do Meu Amigo? para descobrir se o garoto protagonista sobreviveu à tragédia. E é exatamente isso: acompanhamos todo o trajeto do personagem em busca do menino, perguntando aqui e ali, ouvindo histórias, tomando água, cuidando do filho, tentando subir morros íngremes com o carro. Já Através das Oliveiras (1994), que junto aos dois anteriores forma uma espécie de trilogia involuntária, Kiarostami revisita outra vez Koker, de novo mostrando um diretor de cinema. Agora, este quer fazer um filme sobre as conseqüências do tal terremoto e precisa conviver com a paixão que um ator nutre pela colega de trabalho. Se Vida e Nada Mais era um filme sobre outro filme, Através das Oliveiras avança na metalinguagem e mostra um filme sobre o "filme sobre o filme".
Por aí vai: em Gosto de Cereja (1997), temos um homem querendo se suicidar e buscando alguém para ajudá-lo. O Vento nos Levará (1999) apresenta uma equipe de TV esperando um ritual fúnebre acontecer. Dez (2002) mostra o cotidiano de uma mulher andando de carro pela cidade e convivendo com os mais variados tipos de gente. Tudo quase sem ação, mas com muito movimento.
E é aqui que chegamos ao "tudo acontece" de Kiarostami. Se a impressão inicial é de um cinema chato e parado (levando em consideração os padrões e critérios impostos ao grande público pelos filmes-espetáculo), basta olhar com atenção para perceber suas intenções e sentimentos. O que dá maior significado ao cinema de Kiarostami é o movimento. Em praticamente todos os seus filmes, o carro é peça-chave da não-narratividade. Para Abbas, o carro não é veículo de perseguição ou caçadas. É objeto catalisador de curiosidades, investigação, descobertas, inserção em novos universos, realidades e desejos. Onde há um carro em Kiarostami, há alguém querendo informações. Onde há um passageiro, há alguém fazendo perguntas. Onde há um entrave na estrada, há alguma obra tentando conter a destruição de uma terra castigada. Jamais a presença do carro é gratuita.
Também enriquecendo os filmes, há presença constante de atores não profissionais. São pessoas das próprias regiões, que se dispõem a interpretar praticamente elas mesmas e se retratarem na tela para o mundo. Isso é mais explicitado em Através das Oliveiras, quando há problemas de fala com um ator; por isso, o personagem do diretor pede que outro camponês seja escalado. Toda essa carga de realidade dá vazão para dois pensamentos.
O primeiro é de que o cinema de Abbas Kiarostami segue preceitos neo-realistas, inspirado nas lições dos filmes italianos pós-Segunda Guerra (Ladrões de Bicicleta, Roma Cidade Aberta, Paisá). Essa noção tem um pouco de verdade, mas não é só isso. Como bem frisou o crítico Carlos Alberto Mattos em recente entrevista, não existe em Kiarostami o apelo ao melodrama típico do neo-realismo italiano. Há presença de crianças, mas o tratamento dado à narrativa e às imagens não utiliza os recursos de linguagem que consagraram o movimento nos anos 40 e 50. Na verdade, disse Mattos, o diretor iraniano não se enquadraria em nenhum tipo de cinema inventado, mas apenas no seu próprio, algo como um "kiarostanismo".
O segundo ponto em relação ao tom realista empregado por Kiarostami é que, por conta da presença maciça de gente comum recriando seu próprio mundo, é impossível não sentir certo tom de documentário nos filmes do diretor. As pessoas abrem o coração, contam intimidades, relatam decepções profissionais e amorosas, descrevem o horror de um terremoto e a perda de familiares, discutem problemas alheios com desenvoltura, sempre sob perguntas de algum interlocutor mais "letrado". Essa veia documental é, sim, elemento importante no cinema do iraniano, ainda mais considerando ele ter vindo de longa carreira como curta-metragista e autor de documentários de televisão. Quando agarrou a ficção e a escolheu para se expressar, Kiarostami não abriu mão da tentativa de visão real do mundo característica do documentário, por vezes confundindo a cabeça do espectador. É o caso, por exemplo, de Close-up (1990): o diretor registra o julgamento de um pobre amante de cinema que se fez passar por famoso diretor do Irã (Mohsen Makhmalbaf) para conviver com uma família. Mistura imagens de julgamento e recriações de fatos, sem jamais deixar claro o que é verdadeiro ou encenado.
Através desses recursos de descobertas e falas de personagens, Abbas Kiarostami diz o seu "tudo". Acima de todas as coisas, o que fica de seus filmes é o apego imenso à vida. O valor que o diretor dá ao viver certamente é o grande mote de todo o seu cinema. Buscas, perguntas, dúvidas, todas levam ao questionamento maior: vale a pena viver?. A resposta é "sim", na visão do diretor. Não importa as tragédias que se abatam sobre nós, não importa as dores, não importam as injustiças econômicas, sociais ou mesmo físicas. Se existe alguma possibilidade de viver, ela jamais deve ser desperdiçada. Haja o que houver (e como ele mesmo titulou um de seus filmes), a vida continua.
Em Gosto de Cereja, esse discurso toma ares explícitos, na figura do homem amargurado que quer se suicidar a todo custo e sofre um processo de amadurecimento que nem ele mesmo sente estar acontecendo. E em O Vento nos Levará, outra vez o fim da vida é o personagem principal (e de novo para louvar não esse fim, mas sua continuidade), na figura de uma velha senhora cuja morte é ansiosamente aguardada por grupo de documentaristas para que eles registrem os rituais funerários daquela pequena vila do Irã.
Impressionante que Kiarostami diga tudo isso com tão poucos recursos e de formas tão singelas, poéticas e discretas. Sua forma de montagem quase imperceptível, o significado transcendental que pequenos gestos ganham na sua câmera, o movimento humano visto bem de longe, como se acompanhássemos formigas correndo no campo, fazem parte desses recursos. A incompletude da narrativa dos filmes enriquece ainda mais cada um deles. Em diversas ocasiões, não ficamos sabendo o que aconteceu, se o objetivo, o ponto de partida, foi cumprido. Kiarostami deixa que o espectador interaja com seus filmes, não mastiga nada, não entrega de bandeja finais felizes ou infelizes.
Não bastasse essa visão ousada e única de cinema, Abbas Kiarostami tem uma meta: quer chegar ao ponto de fazer um filme em que não exista a figura do diretor. A idéia surgiu após a conclusão de Close-up, quando um espectador do filme comentou com o cineasta que a obra "parecia nem ter diretor". Aquilo intrigou Kiarostami, que começou a questionar como seria um filme sem autoria. Surgiu aí a vontade em dar vida a algo que apagasse essa figura de comando e desse ao público controle total sobre a criação cinematográfica (o que ele vem fazendo aos poucos, a cada novo filme). Dez, mais recente de seus filmes a chegar ao circuito comercial, quase consegue isso, ao ter apenas duas câmeras fixas dentro de um carro: uma aponta para a motorista, outra para o carona. Durante os diálogos, as câmeras vão se alternando, focalizando um e outro. Parece fácil, mas Kiarostami extrai daí toda uma discussão sobre a mulher na sociedade iraniana.
Recentemente, na Mostra de São Paulo, o diretor lançou dois novos filmes: 10 sobre 10, aula de cinema em que Kiarostami em pessoa detalha seu estilo de filmar (falando tudo de dentro de um carro); e Cinco>, proposta mais radical que Dez: apenas cinco planos-seqüências de natureza e movimentos humanos. Ausência total do diretor ou nova idéia estética de filmagem?
Para terminar, vale citar uma fala de Kiarostami inserida em 10 sobre 10, nas suas várias explicações sobre o cinema. Diz ele: "A primeira geração de cineastas, de quando nasceu o cinema, olhava a vida e fazia filmes. A segunda olhava para esses filmes e para a vida e fazia filmes. A terceira voltava seus olhos para os filmes até então feitos para fazer seus filmes. A quarta, que é a nossa, não olha nem para os filmes e nem para a vida para fazer seus filmes. Ela vê só o que é possível fazer em termos de efeitos e tecnologia".
Em suma: Abbas Kiarostami, ao olhar a vida para fazer seus filmes, quer retornar aos primórdios do cinema. Como escreveu o crítico Luiz Carlos Merten em Cinema: Entre a Realidade e o Artifício, Kiarostami quer reeducar o olhar do público, viciado nos códigos já intrinsecamente estabelecidos pelo cinema do espetáculo. Ele quer fazer o espectador ter um novo olhar para as imagens dos filmes e aprender a saborear o que de realmente excepcional esta arte de mais de cem anos tem a oferecer.
PS: quase todos os principais filmes de Abbas Kiarostami
estão disponíveis em VHS no Brasil, sendo alguns também fáceis
de achar em DVD. Vale a procura.
PS II: quem quiser se aprofundar mais no cinema deste
iraniano genial, além de ver seus filmes, pode adquirir o ótimo
livro Caminhos de Kiarostami, escrito pelo crítico e
estudioso Jean-Claude Bernadet e lançado no início de novembro
pela Companhia das Letras.
Leia também:
"Dez", por Drex Alvarez
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