O Homem do Ano
por
Marcelo Costa
31/07/2003
"Conheça Máiquel.
Conheça a filosofia de vida de Máiquel. Observe Máiquel
transformar-se em herói. Perceba como uma dor de dentes pode mudar
uma vida. Acompanhe a trajetória de Máiquel, seus amores,
seus sofrimentos, suas indecisões, suas boas intenções
e as atitudes violentas que acaba de tomar. Impressione-se com a brilhante
carreira de Máiquel, seus amigos, sua ascensão, seu poder.
Sobretudo, trate de entender Máiquel (se conseguir): ele pode estar
ao seu lado neste momento". Patrícia Melo, "O Matador",
1995
Nada melhor do que usar a chamada
da contra-capa do livro para apresentar "O Homem do Ano", adaptação
cinematográfica de José Henrique Fonseca para o texto violento
de Patrícia Melo chamado "O Matador". Primeiro, porque tudo que
está neste parágrafo explica (e muito) o que está
por vir. Segundo, porque é a própria autora falando. Terceiro,
porque dor de dentes é muito foda.
Como livro, "O Matador" é urgente.
É daqueles que você pega a noite antes de dormir e só
desiste com o sol raiando. Para contar toda epopéia de seu personagem
principal, Patrícia usa de influências pop e de citações
(diretas e indiretas) de seu mestre particular, Rubem Fonseca. Personagens
do livro deste participam da história de Patrícia. Nada mais
oportuno, então, que o próprio Rubem Fonseca (pai do diretor,
alias) assuma o roteiro do filme. A cobra dá uma volta e morde o
próprio rabo.
Se como livro "O Matador" honra o
estilo, como filme, "O Homem do Ano" surge como uma das grandes produções
nacionais de 2003. A facilidade de transpor o texto das páginas
para tela conta a favor, muito pelo fato de Patrícia ter trabalhado
com TV e cinema antes de se aventurar nas letras. O texto contado em primeira
pessoa também é uma vantagem, principalmente se um grande
ator agarrar o papel. Bingo: Murilo Benício está excelente.
Do discurso inicial em off você
terá, ao menos, noventa minutos de brilhantismo. Irá perceber
em poucos minutos como um Zé Ninguém pode se transformar
em ídolo da comunidade, um cara respeitado até por policiais,
o homem do ano. A rapidez das passagens coloca "O Homem do Ano" lado a
lado com "Cidade de Deus", como filmes co-irmãos.
Sim, porque "Cidade de Deus" traz
aos olhos do público o que todo mundo sabe, mas pouca gente vê.
Seus personagens são gente real (até demais) que poucos de
nós tem acesso. Já o Máiquel pode ser qualquer um.
Olhe ao lado, ele pode estar te olhando. Sim. Máiquel é o
que se pode chamar de ‘loser’, perdedor, aquele cara que não sabe
nem porque está vivo. A trajetória de Máiquel, porém,
mostra o quão as coisas são desordenadas nesse país
tropical chamado Brasil. Sacode, levanta a poeira e dá a volta por
cima, lembra a música. Como fazer isso é a grande questão
e Máiquel teve a resposta atirada em seu colo como uma bala de 9mm.
A sensação de acompanhar
a trajetória do personagem é a mesma de assistir a "Cidade
de Deus". Você acha engraçado algumas cenas, mas, conforme
o tempo passa, aquilo assusta e apavora. O riso nervoso reina. Não
à toa, o filme poderia se chamar "Tempo de Violência", se
os produtores nacionais já não tivessem dado a obra máxima
de Quentin Tarantino, "Pulp Fiction", este nome. Aliás, "Tempo de
Violência" é elogiado em "O Homem do Ano". Numa passagem x,
você perceberá a reverência.
Muito da virtude cinematográfica
da obra vem do fato da escritora Patrícia Melo ter se aprofundado
nos personagens a ponto de entrevistar assassinos e traficantes antes de
escrever o livro. A verossimilhança é inatacável.
Porém, nem tudo é perfeito
(ao contrário de "Cidade de Deus", excelente em sua totalidade).
Do momento em que se vê no espelho, de cabelos loiros, pintados para
pagar uma aposta com o primo, até a hora em que recebe um prêmio
por seus feitos, "O Homem do Ano" é sensacional. Repleto de ironias,
o filme transborda passagens bacanas. Mas daí em diante, a tensão
parece diminuir e o filme se perde por uns minutos, no exato momento em
que o personagem começa a enfrentar seus maiores dramas. Chega a
parecer que na ânsia por encurtar o filme (que tem, no cinema, 111
minutos), a direção tenha podado cenas vitais para a seqüência
final da obra.
Esse defeito não diminui a
genialidade dos primeiros noventa minutos, mas impede de classificar o
filme como perfeito, afinal, o gostinho de "ficou faltando alguma coisa"
é inevitável.
Mesmo assim, "O Homem do Ano" vale
por muita coisa. Ao menos para você perceber o quanto um porquinho
pode ser legal, que coca-cola sem gelo é cool e que um detalhe,
um acaso ou uma aposta podem mudar uma vida. Ao menos para que você
conheça Patrícia Melo.
Ps. Mais um pouco de "Cidade de Deus":
num certo trecho, o narrador fotógrafo Buscapé diz, sobre
a imagem da 'linha de montagem' do tráfico, que se o mesmo fosse
legalizado, Zé Pequeno seria o homem do ano. Não precisava
tanto... :-)
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