"A morte & a morte de Heath Ledger"
por Rodrigo Fernandes
Blog
18/02/2008

Foi tudo muito, muito estranho. Havia algo de irreal na situação. Havia não, ainda há, não passou. Pela manhã, fazendo minha visita diária à banca de jornais, a revista, com uma curiosa e bizarra figura na capa, me chamou atenção. Era ele, borrado de maquiagem branca e vermelha, com a sobrancelha erguida, um ar de loucura, de deboche, de desafio. Irreconhecível. Uau! À noite, no cinema, me encontro com ele novamente, no trailer do filme onde promete roubar todas as cenas do herói, ser o cara. Me animo. Lamento pelo filme só sair em julho. Quando chego em casa, um último encontro. A manchete, virtual, estampada no site de notícias: "Morre o ator Heath Ledger". Só pode ser uma pegadinha, penso incrédulo. Algum hacker gaiato plantou essa página no meu computador... Ou é sonho. Vai ver ainda estou lá babando na poltrona do cinema, dormindo no meio do filme ruim. Mas não, não era pegadinha. Não, não era sonho. Confesso, fiquei chocado.

Não nego. Nunca fui fã do ator australiano. Gostei de alguns de seus filmes, mas a maioria me passou indiferente, exceção para "O Segredo de Brokeback Mountain", filme excelente, corajoso, sensível. Mas ainda assim acho que sua atuação como um caubói gay e enrustido foi supervalorizada pela mídia. Chamá-lo de novo Marlon Brando é um absurdo colossal. Mas não dá pra negar que o ator sabia o que queria, mesmo inexperiente e em filmes ruins havia a centelha da busca. Ledger tinha fome. Fome de bons papéis, fome de fazer bem feito, fome de ser bom, excelente. Fome ansiosa. Vi pouco e gostei muito do novo Batman. Sua encarnação do Coringa é no mínimo perturbadora. E o filme nem estreou ainda... esquisito isso... é como se o tempo tivesse enlouquecido de repente. A película ainda nem ganhou a luz das telas e o ator não está mais aqui... parece uma brincadeira de mal gosto... uma última piada do Coringa...

Exemplos de astros de cinema que partem cedo há aos montes: James Dean, River Phoenix... mas é impossível não lembrar de Brandon Lee, morto enquanto filmava "O Corvo", filme que o consagraria mundialmente. E há semelhanças, muitas. Ator, personagem. Fama, morte, arte. O Coringa, o roqueiro Eric Draven. Dois personagens derradeiros, nascido dos quadrinhos, feito de sombras, insanos, palhaços sinistros, rostos pintados, alvos como a morte, sorrisos macabros... Ambos atores caídos no auge do sucesso. Arte, morte, fama. Talvez o sarcasmo um tanto idiota de Jack Nicholson ao saber da morte de Ledger talvez não fosse de todo gratuito, há um pouco de bom senso nas palavras nada sutis do velho Jack, um pouco de intimidade com a loucura ("Eu o avisei!" disse Nicholson "Não me chamaram para fazer o Coringa... Só eu sei como fazê-lo").

Até um ator medíocre como eu mesmo fui um dia sabe que emprestar corpo e alma a um personagem não é passear em um jardim de magnólias. Às vezes dói, às vezes pesa, quando o ator vai fundo então... Peter O´Toole que o diga. Depois de filmar "Lawrence da Arábia" por mais de dois anos o ator irlandês nunca mais foi o mesmo, viver tanto tempo na pele de um personagem tão complexo o levou a uma catarse de autodestruição que por pouco não abreviou sua vida e sua carreira. O poeta Drummond dizia que o grande problema do artista é organizar sua loucura. Talvez nunca saibamos até onde a arte ia na vida de Heath Ledger, o jovem ator disse mais de uma vez que desde que começou a interpretar o alucinado Coringa não conseguia mais dormir. Será que Headger não foi fundo demais? Arte, vida. Vida, arte. Onde começa uma e termina a outra? Perguntas, que vão permanecer sem resposta.

Numa entrevista para a revista TRIP, o ator Selton Mello confessou já ter pensado em suicídio. Quando perguntado por que, o ator foi na veia da questão: "é uma forma de se eternizar, de se imortalizar...". É aquela velha história, a morte eterniza a juventude e o talento. Ninguém consegue imaginar Marilyn Monroe cravejada de rugas fazendo o papel de avó do Leonardo DiCaprio, nem Bob Marley cantando reggae de muletas. Mas me contradigo, faço questão de renegar a cultura da morte, a necrofilia da arte. Isso de encarar a morte como fonte da juventude é muito bonito, muito poético, porém, é uma grande besteira. No final das contas é só uma forma de encontrarmos algum consolo frente ao inevitável, alguma utilidade inútil em se morrer jovem. O que todo mundo quer mesmo é segurar a vida com os dentes e não soltar. Morrer é sempre baixo-astral (cacete, o cara só tinha 28 anos... menos do que eu e muitos dos leitores deste site tem agora...). Há outras maneiras de se tornar imortal. Um filho, um livro, uma árvore... Envelhecer também faz parte da vida. Até por que, quem quer ser um imortal morto?

Independente se Heath Ledger se matou, se foi uma overdose acidental, se tinha o coração fraco, se foi afetado por seu último personagem... enfim... isso não vem ao caso... Independente de qualquer coisa o que vai ficar é sua legenda incompleta. Ele sempre vai ser a grande promessa não cumprida. Ele sempre será o herói atrapalhado de "Coração de Cavaleiro", o idealista que se sacrifica em "O Patriota", o caubói indicado ao Oscar de "O Segredo de Brokeback Mountain", o novo Marlon Brando e provavelmente o melhor vilão que os filmes de super-heróis já tiveram. Ele sempre será isso tudo e mais aquilo que poderia ter sido. Para o bem ou para o mal, assim nascem os mitos.