"Cruzada"
por
Drex Alvarez
Blog
13/05/2005
Dizem por aí que a vida é feita de escolhas. Se são essas escolhas que definem a felicidade ou o sucesso, isso já é outra estória. Ridley Scott, por exemplo, começou sua nova empreitada cinematográfica com uma decisão certeira. Ao querer filmar seu épico sobre as Cruzadas, as míticas guerras sancionadas pelo Papa com o objetivo de conquistar e manter o poder sobre Jerusalém, Scott tinha ao seu dispor quase 200 anos de História. Afinal, aconteceram nove Cruzadas entre 1095 e 1290.
Scott não se embrulhou em tamanha amplitude histórica e teve habilidade para escolher um período que, embora relativamente curto (seu filme se passa entre 1184 e 1187), contém acontecimentos que lhe permitiam fechar um arco narrativo bastante consistente. Um período historicamente crítico, cheio de reviravoltas dramáticas, vitórias relativas e derrotas fragorosas. Ou seja, um prato cheio de simbologias. Uma primeira escolha, portanto, bastante feliz.
Cruzada (Kingdom of Heaven) começa em 1184, quando os cristãos dominavam a Terra Santa. Tanto a Primeira Cruzada (lançada pelo Papa Urbano II) quanto a Segunda (iniciada em 1147) haviam sido bem sucedidas e garantiram a criação do chamado Reino Latino de Jerusalém. Naquele momento, o trono de Jerusalém era ocupado pelo Rei Balduíno IV e, digamos assim, tal como hoje em dia, administrar aquele barril de pólvora não era das tarefas mais fáceis.
Uma cidade multi-étnica, sagrada para três religiões, porta de entrada estratégica tanto para o Oriente e quanto para o Ocidente. A fim de tornar-se viável, Balduíno optou por uma política de tolerância e diplomacia. Permitia aos árabes liberdade de culto e de trânsito, tentava coibir a violência religiosa dos radicais e amenizar as ambições das raposas políticas. Nesse equilíbrio delicado, Balduíno também tentava estabelecer uma espécie de "boa-vizinhança" com os domínios árabes vizinhos - três anos antes havia conseguido um acordo de paz com o Sultão Saladino.
Tornando tudo ainda mais frágil, Balduíno IV está morrendo. Utiliza uma máscara de prata para esconder o rosto desfigurado pela lepra (de Edward Norton, que interpreta o Rei, só se ouve a voz). As disputas políticas pela sucessão abrem então espaço para uma infinidade de outros interesses. Seja por motivos religiosos, políticos ou econômicos, todos parecem interessados em provocar um confronto aberto com os árabes. E conseguem ter sucesso nesta empreitada.
É claro que, dentro deste macro-contexto, há também espaço para uma micro-trajetória. O herói de Cruzada é, na verdade, Balian (Orlando Bloom), um modesto ferreiro de uma aldeia rural francesa, atormentado pelo suicídio de sua esposa. Em meio a sua tragédia pessoal, Balian recebe a visita de um cavaleiro cruzado, o Barão de Ibelin (Liaam Neeson), que lhe revela ser seu pai. Numa espécie de busca por redenção, Balian segue para Jerusalém, onde acaba ganhando espaço na côrte do Rei Balduíno e, posteriormente, se envolvendo na defesa da cidade contra o Sultão Saladino.
Depois de três parágrafos de sinopse (me perdoem, mas é um épico), já é possível perceber que Ridley Scott escolheu mexer em assuntos delicados. Falar de luta religiosa entre árabes e cristãos, hoje em dia, é com toda a certeza brincar num vespeiro de opiniões nem sempre amistosas.
Por mais polêmico que o asssunto seja, no entanto, muito me espantou ler algumas resenhas dos cadernos culturais brasileiros na última semana. Sérgio D'Avilla, na Folha de São Paulo, e Luiz Zanin Oricchio, no Estadão, consideraram que o filme de Scott defende a atual política imperialista norte-americana.
Com todo respeito, mas não é possível que eles tenham visto Cruzada de olhos abertos. Ou talvez, e isso parece ser bastante mais provável, lhes cause prazer encaixar algumas linhas de discurso anti-americano na resenha de qualquer blockbuster que venha do território ianque. É bonito, afinal, falar mal de Hollywood e, ainda mais, de George Bush.
Eu devo ter visto outro filme. Ou não fui capaz de alcançar as mensagens subliminares de Ridley Scott. Porque, no que eu pude compreender, Cruzada oferece um tratamento dado aos árabes que há muito tempo não se via no cinema americano. Há respeito e pluralismo. Não que o filme seja muito sofisticado, mas seu maniqueísmo é multi-étnico (existem mocinhos e bandidos dos dois lados, entre os cristãos e entre os árabes). O Sultão Saladino é retratado como um líder que defende duramente suas posições, mas que está baseado em motivos coerentes, é equilibrado e aberto às negociações. Os árabes, em Cruzada, não são um bando de orcs ferozes e dispostos a ocupar Jerusalém. Fica claro que existem tanto motivos como irracionalidades em ambos os lados.
Ao contrário do teor religioso e conservador dos discursos de
Bush, Cruzada traz o conflito para a dimensão laica,
explicitando os interesses mundanos e as disputas político-
econômicas. O discurso de Balian, inspirado em seu pai, é humanista,
no sentido que prega que não se deve apegar-se a dogmas religiosos,
mas sim aos valores éticos que temos em "nossa mente e
nosso coração". É deixado claro, em diversas falas até
demasiadamente didáticas, a visão crítica de que as Cruzadas
manipulavam os motivos religiosos para conquistar terras e riquezas.
Ao contrário dos novos-conservadores do Departamento de Estado
dos EUA, Cruzada não prega ataques preventivos. Defende
as possibilidades diplomáticas até a última alternativa. Não
prega que haja uma "Verdade", política ou religiosa,
a ser imposta unilateralmente. Na verdade, o filme coloca a
culpa dos conflitos nas mãos dos radicais e ambiciosos, que
forjam os motivos da guerra.
Dizendo tudo isso, parece até que Cruzada é um filme
pró-árabe. Não é, mas foi esse tipo de polêmica que foi levantado
por alguns intelectuais mais conservadores dos Estados Unidos
e Inglaterra. Professores de Cambridge julgaram que o filme
apresenta um fictício Islã evoluído e progressivo, tal como
nos romances de Walter Scott. Chegaram a dizer que Cruzada
era "a versão de Osama Bin Laden sobre a história".
Ou seja, o filme gerou polêmica sim, mas uma polêmica inversamente
diferente da levantada nos jornais brasileiros. Talvez por isso
sente-se o tom irritado de Ridley Scott na entrevista que deu
à Folha de São Paulo.
A simbologia ideológica de Cruzada carrega, é claro,
no mito do herói em busca de si mesmo, através da "ética
do caubói" (citada por D'Avilla), enaltecendo a conquista
individual. Mas isso é uma mitologia americana, não necessariamente
"bushiana". E todo filme de Hollywood está impregnado
disso. Da mesma maneira, se o simples fato de falar sobre as
Cruzadas, ou sobre qualquer conflito árabe-cristão, já for considerado
imperialista e politicamente incorreto, então queimemos os livros
de História.
Paranóia e críticas infundadas são um desserviço a qualquer
causa. Querer enxergar as "forças do imperialismo"
em toda e qualquer obra comercial nada mais faz do que enfraquecer
a credibilidade tão necessária para se denunciar os verdadeiros
abusos. É a velha estória de mentir sempre sobre o lobo, e quando
o lobo realmente aparece então ninguém acredita.
Ridley Scott, entretanto, deve ser criticado por outras escolhas, não as políticas. O diretor inglês, infelizmente, não conseguiu transformar o grande enredo que tinha nas mãos numa estória realmente empolgante. Cruzada é interessante racionalmente, mas não te conquista nunca pela emoção.
Talvez os atores escolhidos para os papéis mais jovens (Orlando Bloom e Eva Green) não tenham sido boas apostas. Nos momentos em que Jeremy Irons está presente na tela, é possível perceber como só um pouco mais de carisma já consegue imprimir um outro encanto ao filme.
Fica claro também que a fórmula dos atuais épicos históricos já se esgotou. Produção milionária, cenários belíssimos, gigantescas batalhas desenhadas digitalmente, tudo isso já não impressiona mais. Peter Jackson, com a Trilogia dos Anéis, inventou e esgotou essa fórmula numa tacada só. Novamente passa a fazer falta, para que o filme seja verdadeiramente interessante, aquele algo a mais que só o talento artístico pode trazer. Ou, ao menos, que se tenha um roteiro consistente e um punhado de personagens interessantes. Penso em Elizabeth como um filme épico que reúne todas essas qualidades.
Polêmicas e defeitos à parte, Cruzada ainda é um filme que vale a pena assistir. E assistir no cinema, por favor. Afinal, se as super-produções valem algo, é para vê-las na grandiosidade da telona. Além disso, é um bom filme, muito atrativo para quem tem um mínimo interesse pela História, oferece boa ação e uma trama acima da média. E, por favor, que se esqueçam tantas neuras políticas e religiosas. Até Freud admitia - às vezes um charuto é apenas um charuto. E às vezes nem há charuto ali. Cruzada, se peca por algo, é por às vezes parecer idealista demais. No fim, dá até para torcer pelo mocinho. Sem culpa nenhuma.
Site Oficial
do filme
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