A Viagem de Chihiro
por Ronaldo Gazolla
rgazolla@areaweb.com.br
18/07/2003

Existe no Brasil um forte preconceito quando se trata de animação japonesa. A tendência de algumas pessoas é descartar toda e qualquer animação daquele país (mas, em geral, são as mesmas pessoas que adoraram os 'Animatrix', que são 'diferentes'). Uma das possíveis causas desse comportamento são os inúmeros exemplos de péssimos desenhos animados orientais que infestam tanto os canais abertos quanto os fechados na televisão brasileira. Mas acontece que também entre os desenhos produzidos no Ocidente atualmente, são raríssimos os casos em que algum se salva. Ou seja, o que é preciso é separar animações do nível de um 'Pokémon' da animação japonesa de qualidade, da qual 'A Viagem de Chihiro' (Sen to Chihiro no Kamikakushi - Japão, 2001) é um belíssimo exemplar. 

O filme acompanha a bizarra trajetória da garota Chihiro por um lugar povoado de seres estranhos. Os pais da menina, viajando com destino a um novo lar, se perdem no caminho e encontram um túnel que decidem atravessar, apesar dos temores de Chihiro. Do outro lado descobrem o que parece ser um parque temático abandonado (‘muitos foram construídos há algum tempo e alguns faliram’, explica o pai). No lugar os três encontram alguma comida e os pais da garota decidem comer enquanto a própria Chihiro se recusa. Os adultos acabam se transformando em porcos, enquanto o que parecia um parque temático se revela uma casa de banhos para deuses. Chihiro, com a ajuda do garoto Haku, habitante do local, precisa aprender como se comportar naquele lugar enquanto tenta descobrir um modo de salvar seus pais. 

A princípio, pode ser difícil decidir se esta é uma animação voltada para crianças ou adultos. Mas, apesar de possuir uma coleção de personagens mágicos, capazes de mudarem de forma ou de lançarem encantos sobre outros seres, que se encaixariam bem em qualquer animação mais infantil ‘A Viagem de Chihiro’, possui um clima por vezes assustador, apresentando esses personagens em situações mais adequadas ao público adulto (ou adolescente). Mesmo assim, o filme é exibido em cópias dubladas, pelo menos por enquanto (há a possibilidade do lançamento da versão com legendas). De qualquer forma, é bem dublado, sem exceções. 

O filme possui vários personagens que merecem destaque, em um ou outro aspecto. A começar por sua protagonista. A garota Chihiro se afasta dos heróis rasos e unidimensionais habitualmente presentes na maioria das animações. E, no decorrer do filme, Chihiro apresenta um real desenvolvimento em sua personalidade, o que é ainda mais raro. Entre outros personagens marcantes estão Yubaba e Kamaji. A primeira, com seu visual de bruxa e com uma cabeça descomunal, é o personagem mais assustador do filme, por ser capaz de controlar tudo a sua volta através de feitiços, além de ser capaz de se transformar em uma espécie de pássaro, o que lhe possibilita maior locomoção. O segundo, possuidor de oito braços muito úteis, inicialmente se apresenta a Chihiro como mais um perigo, mas aos poucos a garotinha percebe sua verdadeira personalidade. 

Considerado um mestre em seu país, o diretor e roteirista Hayao Miyazaki merece todos os créditos por criar uma aventura empolgante, detentora de algumas mensagens importantes, mas que não cai na armadilha da lição de moral barata. Com uma técnica de animação tradicional, usando o auxílio do computador de forma mínima, Miyazaki conduz a narrativa magistralmente, inserindo detalhes profundos à história, utilizando vários momentos de silêncios (outra característica nem um pouco tradicional) e trabalhando muito bem no uso das cores. Seu filme pode ser encarado como um mistura de ‘Alice no País das Maravilhas’ com ‘O Mágico de Oz’. Mas é muito mais do que isso, claro. Possui, inclusive, algumas pitadas de crítica ao consumismo, ao capitalismo e à vida moderna. Além dos personagens, Miyazaki cria também cenários fantásticos, como aquele no qual trabalha Kamaji, com vários pequenos auxiliares parecidos com aranhas. Também fascinantes são alguma ‘regras’ que agem sobre o lugar em que Chihiro se encontra aprisionada, como a necessidade de arrumar um trabalho, para conseguir sobreviver, já que do contrário poderá ser considerada preguiçosa, o que não é permitido. Além disso a garota passa a ser chamada de Sen e, se esquecer seu verdadeiro nome, nunca poderá fugir (uma estratégia de Yubaba para aprisionar as pessoas). Todos esses detalhes ajudam o espectador a permanecer constantemente interessado na história, sendo constantemente surpreendido por algum novo acontecimento. 

‘A Viagem de Chihiro’ foi o vencedor do Oscar de melhor animação, vencendo também o Urso de Ouro no Festival de Berlim, além de ter se transformado na maior bilheteria já alcançada no Japão, seu país de origem. Não lhe faltam méritos para justificar tais feitos.