"O Cheiro do Ralo"
por
Ricardo Manini
Blog
05/11/2006
Há algo de errado no sistema econômico quando ele renega a condição
humana. Na mesma manhã em que um taxista me perguntava o motivo
dos setores intelectuais estarem historicamente ligados ao PT,
o filme de Heitor Dhalia, Cheiro de Ralo, me respondeu
a questão. Quem assistir pode logo pensar em consumismo, palavrinha
desgastada, que hoje não tem mais muito significado. As engrenagens
que norteiam a sociedade, contudo, são muito mais profundas.
Em outra bela manhã, o cineasta João Batista de Andrade acordou
com o telefone a tocar em seu pequeno apartamento, em São Paulo.
Chovia. Do outro lado do mundo vinha a informação de que O
Homem Que Virou Suco, seu filme rodado com parco dinheiro
e grande vontade, faturara o principal prêmio do Festival de
Moscou. Era um trabalho indissociável do marxismo, da crítica
social e política. Era 1983. Cheiro de Ralo também tem
o perfume (ou seria o odor?) de Karl Marx. É 2006 e ele acabou
de vencer a 30ª Mostra de Cinema Internacional de São Paulo
após ter levado o prêmio especial do júri no Festival do Rio.
A dissolução da maior potência comunista que o mundo já possuiu
e a queda de um muro separam os dois trabalhos. Fosse "apenas"
isso, eles talvez fossem semelhantes. Entretanto, são quase
completamente diferentes, em termos de técnicas de cinema. De
pensamento por trás, de profundidade, de cerne filosófico, não.
Talvez seja porque a classe artística, assim como os setores
intelectuais, é de esquerda, historicamente ligada ao PT. Fio
que não se rompeu com a escalada neoliberal ainda em curso e
isso é fácil constatar. Pergunte àquele seu amigo ou a algum
familiar, que seja chegado em cultura e um tanto desligado da
vida política brasileira, e verifique se ele vota ou não contra
Alckmin (pode ser também que vote em Lula). São esquerdistas.
E o que prega a esquerda?
Que o Estado interfira na economia. Assim, grosso modo, sem
meias palavras. A base é que a sociedade não consegue se entender
sozinha com o mercado e que uma instituição que regule e controle
essa relação precisa ser forte. Sem dúvida alguma, o principal
nome dessa corrente é mesmo Karl Marx, mas não se pode esquecer
de John Maynard Keynes, que praticamente inventou, nos anos
30, a macroeconomia, com um livrinho hoje pouco lido, embora
ainda muito comentado: A Teoria dos Juros, do Emprego e da
Moeda.
Do lado de lá da fronteira, na teoria da tal direita econômica,
dos pioneiros do que hoje se transformou no neoliberalismo,
o pensamento é o oposto. A idéia é de que o ser humano é suficientemente
inteligente e capaz de organizar o mercado de modo que todos
se beneficiem dele. Ou seja, não há Estado, como prega Friedrich
Hayek. Ou, quando existe, ele é mínimo, como prega Milton Friedman,
o maior economista que o século XX conheceu, autor do fundamental
Capitalismo e Liberdade. O que distancia a classe artística
desse pensamento "conservador" (eu nunca entendo onde é conservador
e, no Brasil, fica ainda mais difícil localizar esse ponto)
não é, pasme!, o capitalismo. Mas sim o conceito pelo qual,
ainda no século XIX, essa teoria começou a ser erguida: o utilitarismo.
Você tem que ser comercialmente útil. Senão, não vive.
É justamente aqui que se abre um violento fosso, que separa
qualquer projeto de nação neoliberal, como o do PSDB, de qualquer
artista respeitável (não, não acho que a Regina Duarte seja
um primor de atriz). Embora os fundamentos do pensamento neoliberal
estejam todos corretos, isto é, embora o tal Consenso de Washington,
o receituário do que deveria ser feito para os países crescerem
(os em desenvolvimento, como nós) esteja correto, ele ignora
que existem atividades que fogem dessa órbita de mercado. Ignora
que um filme como Cheiro do Ralo consiga ser aprovado
pelo governo e que, na seqüência, nenhuma multinacional queira
aplicar dinheiro nele, mesmo podendo descontar dos impostos
que pagam e repassando o custo do filme para o consumidor (que
é você). Razão 1: o filme critica a relação que elas tem com
seus empregados, embora de um modo totalmente subliminar, ao
afirmar que o puro utilitarismo é uma idiotice. Razão 2: não
se pode associar a marca a um filme que vai fundo na questão
e mostra claramente a sordidez de um homem que só tem uma utilidade
na vida. Digo, duas: ele compra e ele vende. É isso.
Quando vejo setores do PSDB falarem em "atingir a massa", esta
é a primeira questão que me aparece. A "massa" quer ver televisão,
ir a jogo de futebol, beber e comer em churrasco com os amigos,
sair de tarde do trabalho, da aula, de onde quer que seja, para
levar a namorada, ficante, ou sabe-se lá quem para o motel.
Gira, é verdade, uma indústria. Mas é muito mais do que comprar
e vender. São seres humanos, que deveriam ter direito a um mundo
bem mais divertido do que o proposto pela rigidez do pensamento
econômico. Em cada número divulgado do crescimento do PIB, há
um sem número de histórias. Mas os neoliberais acham que isso
não interessa - o importante é o número, não as histórias. Ao
menos quando são outras vidas em jogo. Ao menos quando isso
permite que o poder esteja em suas mãos.
Que o poder é inebriante não é nenhuma novidade. Que Alckmin
ou Lula não estão preparados para resolver esse fosso que está
aberto, também não, porque significaria jogar contra si próprio.
Ser presidente do Brasil leva ao maior poder existente nesse
território e isso está longe de ser algo inédito, desde remotos
tempos. E, enquanto não abraçarmos um projeto de país, uma ideologia
de nação, que contemple os diferentes setores sociais, será
simplesmente impossível que se chegue à harmonia desejada, que
se consiga tapar o fosso que separa a ideologia econômica da
manifestação humana. O Estado se localizar apenas em pontos
estratégicos para fazer a economia funcionar da melhor forma
talvez fosse a melhor idéia. Teríamos então um Estado pequeno
e pouca gente gostaria de ser político, afinal o capital disponível
para corrupção seria menor. Mas quem disse que tem alguém capaz
de fazer isso? No governo, ninguém nunca sabe de nada.
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