"Café e Cigarros
"
por
Marcelo Costa
Fotos - Divulgação
maccosta@hotmail.com
20/12/2004
Eu
não fumo cigarros, nem gosto muito de café. Mas eu já fumei:
eu tinha dezesseis anos e achava cool ter um cigarro entre os
dedos, como se aquilo me trouxesse mais segurança ou sei lá
o que (até hoje me pergunto de que adiantou ler Shakespeare
e Hesse antes dos 15, mas tudo bem). Porém, convenhamos: fumar
é cool, mas é preciso ter prazer em jogar tabaco para dentro
do pulmão, algo que eu não tinha. O charme durou uns sete meses.
Já com o café a relação é mais próxima. Não costumava tomar
puro. Em casa, era sempre café com leite. Porém, depois que
você começa a morar sozinho e a trabalhar demais, o café surge
com um bom companheiro. No entanto, não posso exagerar: a gastrite
reclama quando os baldes de café começam a se tornar freqüentes,
mas, assumo: até gosto um pouco de café, mas na escala de líquidos
consumíveis, acho que ele não fica nem no top ten.
Café e Cigarros (Coffee and Cigarettes), do cult
diretor Jim Jarmusch, joga todo esse parágrafo anterior no cinzeiro.
O filme é uma constante tentação ao espectador, tendo como foco
onze pequenas histórias em preto (café) e branco (cigarros)
que se passam, invariavelmente, em uma mesa em que pessoas alternam
tragadas em bastonetes nicotinosos com goles de cafeína fervida
em água quente, e açúcar ao gosto de cada um. Porém, mais do
que um filme, Café e Cigarros parece um passatempo do
diretor alemão. São pequenas histórias que brincam com as personas
de algumas celebridades, entre elas, Roberto Benigni, Steve
Buscemi, Iggy Pop, Tom Waits, Cate Blanchet, Jack White, Meg
White e Bill Murray.
O embrião de Café e Cigarros foi um curta-metragem filmado
por Jarmusch em 1986, para o Saturday Night Live. Em
Strange to Meet You, um Roberto Benigni com cara de psicopata
partilha com Steven Wright algumas doses de cafés e cigarros.
No curta, um dos melhores do filme, o duo chega a conclusão
que tomar café a noite acelera os sonhos. O papo termina de
uma forma deliciosamente nonsense. Com esse curta filmado, Jarmusch
guardou a idéia durante anos, filmando sempre quando tinha uma
oportunidade. Assim, em 1989, Steve Buscemi encarou os gêmeos
Cinqué e Joie Lee (filhos do diretor Spike Lee) num boteco para
contar uma incrível história de Elvis Presley (sim, sim, ele
está vivo!).
Três anos depois foi a vez de Iggy Pop e Tom Waits se encontrarem
em um boteco, ao lado de uma jukebox, e ficarem trocando idéias
impagáveis. "Cara, conheci um baterista sensacional. Assim que
o vi tocando, pensei: preciso apresenta-lo para o Tom", diz
Iggy. "Você está querendo dizer que o som da bateria dos meus
discos é uma porcaria? É isso?", responde Tom Waits, sério
e impagável. O sarcasmo flutua no ar junto com a fumaça,
que, alias, nem devia marcar presença nesse quadro, já que tanto
Tom quanto Iggy haviam abandonado os cigarros por ordem médica.
"Mas fumar um cigarro é um exemplo de força", provoca Tom Waits.
"Só quem parou de fumar pode acender um cigarro e dizer: estou
fumando um cigarro, mas eu já parei. E só para provar que sou
forte vou fumar apenas um", conclui o pensamento Tom Waits.
Incrédulo, Iggy Pop aceita um cigarro e os dois astros parecem
ter orgasmos quando a nicotina invade o corpo. Hilário.
O final do esquete é muito engraçado.
É de 1992, também, o mediano quarto episódio do filme,
em que Joe Rignano e Vinny Vella passam o tempo discutindo os
malefícios do cigarro. Desse ponto em diante, Café e Cigarros
sofre uma queda sintomática, principalmente a partir dos episódios
filmados em 2003. Entre os mais fracos estão o quinto episódio
(com Renée French) e o sétimo (com o duo White Stripes enchendo
o saco). Dos medianos, temos o sexto (com os atores Isaach de
Bankolé e Alex Desças), o oitavo (com Cate Blanchet fazendo
papel duplo e brincando com a fama) e o último (com William
Rice e Taylor Mead transformando café em champagne num trecho
bastante poético). Os dois únicos trechos que mantém
o pico inicial são o nono (Alfred Molina e Steve Coogan) e o
décimo (RZA e GZA, do Wu-Tan Clan, e Bill Murray, absurdamente
impagável).
No nono, o americano Alfred Molina recebe o inglês Steve Coogan
nos Estados Unidos. Para quem não se lembra, Steve Coogan faz
o papel principal do filme 24 Hour Party People, encarnando
o produtor Tony Wilson. Na época de seu lançamento, Peter Hook,
do New Order, chegou a dizer que o papel da pessoa mais chata
de Manchester (Tony) havia ficado com a segunda pessoa mais
chata da cidade (Steve). Em Café e Cigarros, Jarmusch
apenas reforça a tese. Molina quer se aproximar de Coogan de
qualquer maneira, mas o inglês (que dispensa o café e toma chá)
não corresponde a amizade. Em um momento crucial, Molina pede
o número do celular de Coogan. "Seria muito horrível da minha
parte não te dar o número?", diz Coogan. Até que toca o telefone
de Molina. "Oi, Spike, tudo bem?". A conversa segue, close no
rosto de Coogan, maluco de curiosidade e querendo ouvir alguma
coisa do papo, sem sucesso. Quando Molina desliga o telefone,
Coogan pergunta: "Você estava falando com o Spike Lee?". Molina
responde: "Não, não". Então Coogan solta a respiração, completamente
aliviado, até que Molina emplaca: "Era o Spike Jonze". Sem palavras...
Não dá para considerar Coffee and Cigarettes um filme.
Autor de obras fortes como Estranhos no Paraiso, Down
by Law, Mystery Train e Dead Man, Jarmusch
apenas exercita sua maneira de ver o mundo em pequenos relatos
cheios de cinismo, tédio, banalidade e silêncios. O ponto mais
interessante do filme, no entanto, é sua correlação com a realidade.
Jarmusch filma as personas de alguns ícones do cinema e da música
em um momento de pretensa realidade. A brincadeira acaba sendo
a grande sacada do filme, afinal, será que Iggy Pop é realmente
daquele jeito, ou está atuando como Iggy Pop? No entanto, no
fiel da balança, por mais que existam pontos em comum entre
os esquetes, e as referências tentem aproximar alguns trechos,
Coffee and Cigarettes carece de unidade. Os momentos
bons são muito bons. Os ruins são muito ruins. E o resultado
é mediano. Vale com diversão, mas já é costume esperar um pouco
mais do que diversão de diretores como Jim Jarmusch. Coffee
and Cigarettes é apenas um filme feito entre cafés e cigarros,
um passatempo no intervalo de obras maiores.
Site Oficial
do filme Coffee & Cigarettes
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