"Bonecas Russas"
por Marcelo Costa
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18/04/2006

1999: oito jovens dividem um apartamento em Barcelona, na Espanha. A curiosidade: todos eles são de nacionalidades diferentes, o que causa um pequeno caos no ambiente, que se transforma em uma sonhadora torre de babel moderna, e recebe o nome literal de "o albergue espanhol", que na gíria francesa significa um lugar onde as culturas se misturam como num caldeirão, onde não há regras e tudo pode acontecer. Como se aprende no dia-a-dia, é impossível não ser envolvido e influenciado pelas pessoas que estão ao nosso redor, e O Albergue Espanhol flagra exatamente isso: uma turma de estudantes descobrindo e dividindo o poder dos sonhos.

Corte para 2004: o francês Xavier (Roman Duris), personagem principal de O Albergue Espanhol, está cinco anos mais velho. Ele chegou em Barcelona com 25 e, agora, está perdido em Paris com 30. Se cinco anos antes, Xavier tinha planos para o futuro, agora ele se vê obrigado a enfrentar o futuro todas as manhãs, e o futuro é bem mais complicado (e divertido – para nós, público) do que ele poderia supor em um passado não tão distante. Xavier acabou se tornando um escritor não publicado, um roteirista mal-pago e um exímio mestre em se enrolar com as mulheres erradas. E sua história "atual" é o mote de Bonecas Russas.

Bonecas Russas é a dita continuação de O Albergue Espanhol, e funciona, num paralelo bastante próximo, como a dobradinha Antes do Amanhecer/Antes do Por-do-Sol, de Richard Linklater: o diretor e roteirista francês Cédric Klapisch usa a metáfora do tempo para exibir as mudanças de personalidade em seus personagens. Porém, se na dobradinha de Linklater, Jesse e Celine envelhecem após nove anos separados, em Bonecas Russas, Xavier continua o mesmo cara desprovido de certezas como era cinco anos antes, parecendo um tanto mais verossímil em um mundo que acorda todos os dias buscando não envelhecer. Ainda que Klapisch insista em repartir a trama em pequenos núcleos narrativos que se dispersam, e que a edição exagerada (bem típica do moderno cinema francês pós - Amelie Poulain) entorne o caldo em algumas passagens desnecessárias, o resultado final é belo e merece ser visto com atenção.

Os desacertos da produção não atrapalham a história muito pelas ótimas atuações do quarteto principal de atores, liderado por Roman Duris e Kelly Reilly (como Wendy: lembra da inglesinha meio ruivinha, irmã de um dos moradores de O Albergue Espanhol?), e um pouco mais abaixo, Audrey Tautou e a ótima Cécile de France (impagável como a lésbica Isabelle), que ganhou o Cesar de Melhor Revelação Feminina por O Albergue Espanhol, e voltou a ter sua atuação reconhecida com Bonecas Russas, sendo indicada na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante. A rigor, por mais que seja uma seqüência, Bonecas Russas é bem fechado em si mesmo, não tendo ligações diretas com O Albergue Espanhol, permitindo que o espectador assista ao segundo sem se perder na trama. A ligação, na verdade, é do tempo: a irresponsabilidade da época estudantil ambientada no primeiro filme dá lugar ao peso da vida (quase) adulta no segundo filme, em que palavras como trabalho, dinheiro e relacionamento ganham novos significados.

A história, embaralhada, é mais ou menos a seguinte: Xavier está solteiro, mas continua amigo de sua ex, Martine (Audrey Tautou), apesar de ama-la sonhadoramente. Xavier é um conquistador nato, e combina essa virtude adolescente (que, na verdade, se mostrará um defeito adulto) com a realidade de um escritor que não consegue emplacar um livro, e que vê seu roteiro sendo mutilado por empresários. Ùltimo abuso: por uma parceria com uma produtora britânica, o roteiro precisará ser reescrito... em inglês. Inseguro em entregar seu texto nas mãos de um desconhecido, Xavier acaba recorrendo a Wendy (Kelly Reilly), irmã de William (Kevin Bishop), o britânico que conheceu – e com quem conviveu por meses – em Barcelona.

Deste ponto em diante a história bifurca, para se encontrar no final, que surge quando um dos moradores do albergue espanhol decide se casar com uma bailarinha russa, e convida todos os amigos do ex-apartamento para o casório em San Petesburgo. É neste cenário de obra de arte que Bonecas Russas exibe sua parte mais exagerada, e também seu trecho mais comovente. Na Rússia, Xavier encontra seu verdadeiro eu, numa linda linha monologar: "Qualquer cara teria saído correndo atrás dela. Eu fiquei parado. Ou melhor, o trem se moveu. E me levou para longe dela".

Aproveitando o belo cenário europeu, Klapisch leva o público de cá (Paris) para lá (Londres) nesta comédia romântica masculina temperada com boas doses de drama e algumas pitadas de cinema pastelão. Xavier simboliza o homem moderno, e a belíssima metáfora com as bonecas russas (uma matriochka, boneca oca feita de madeira, em que de acordo com que vamos abrindo, também vamos encontrando uma menor dentro dela, e assim continuamente até encontrarmos a menor) funciona de forma tão arrebatadora quanto a escolha da música Mysteries, de Beth Gibbons, que embala dois momentos importantes da trama. Descontada a pieguice de algumas passagens, Bonecas Russas se transforma em um bonito filme adolescente, que termina por concluir o óbvio: o timming de cada um é completamente diferente: para algumas pessoas, os anos passam mais rápido; para outras, é preciso errar muito para se conseguir acertar.

Site Oficial do filme Bonecas Russas

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