"Babel"
por Marcelo Costa
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06/02/2007

Marrocos, um sol pra lá de 30 graus. Um marroquino vende a outro um presente que ganhou de um gringo: um rifle. O novo dono do rifle deseja o armamento apenas para proteger seu rebanho de ovelhas do ataque carnívoro dos lobos. Sua nova aquisição vem acompanhada de 100 projéteis, que podem atingir um alvo distante até 5 quilômetros do tiro. O armamento é entregue aos filhos, dois meninos que cuidam do rebanho. O mais jovem é mais esperto, atira melhor, e costuma olhar a própria irmã trocar de roupa. O mais velho é lento no raciocínio, na agilidade e na malandragem, o que lhe impinge um sentimento de inferioridade raivosa, que causará um desafio: "se você é bom, e se o tiro pode chegar até 5km de distância, quero ver você acertar aquele ônibus".

O diretor Alejandro González-Iñárritu é bastante calmo na realização cinematográfica do parágrafo acima, trecho de abertura de Babel, filme que fecha a trilogia da dor, composta ainda pelo sensacional Amores Brutos e pelo excelente 21 Gramas. Desde seus primeiros segundos, a história se desenrola de forma clara e simples, em um tom que será seguido nos 142 minutos da película. E tudo o que acontece no desenrolar do bom roteiro de Guillermo Arriaga traz alguma ligação com o inocente e inconseqüente apertar de gatilho que fecha o primeiro parágrafo deste texto.

Assim como nos dois primeiros filmes de sua trilogia, Iñárritu junta três histórias em uma, bate tudo em seu liquidificador dramático, e despeja a mistura no colo do espectador. O resultado deixa a desejar no quesito comparação (Babel é notadamente inferior a 21 Gramas, que, mesmo excelente, era inferior a Amores Brutos), mas não pode ser julgado como um filme menor. A dupla Iñárritu/Arraiga costura o roteiro de forma quase brilhante, e a verossimilhança das histórias (que beira o clichê, positivo, mas mesmo assim clichê) só esbarra na falta de grandes momentos ao todo. Dos três filmes da dupla mexicana, Babel é o mais linear no quesito emoção. Ao contrário de seus antecessores, cujo desdobramento do roteiro vinha acompanhado de alguma grande surpresa, Babel distancia os personagens do espectador, e por mais que os clichês tentem uma reaproximação, falta ao filme algo que consiga colocar o estômago do espectador na boca.

Essa pequena falta de emoção deu a obra, por mais que pareça contraditório, um ar de dramalhão noveleiro, que muitos ainda apontam ser fatalista em sua forma de ver o mundo, e conservador em observar os acontecimentos sob a ótica de uma antiquada moral católica. Não sei se concordo, mas acho um absurdo perceberem tudo isso só agora, já que as três obras de Iñárritu/Arraiga usam e abusam do fatalismo. Mais: é um fatalismo que beira o clichê, pois o ditado popular (e quer coisa mais clichê que um ditado popular) conta que "desgraça pouca é bobagem". E, no caso das histórias secundárias (da empregada mexicana e da estudante japonesa), nem é tanta desgraça acumulada. No fundo, Babel é um castelo de cartas que desaba, e acaba ferindo a todos aqueles que possuem alguma relação com a construção de papel. Iñárritu pode não ter feito outro filme sensacional, mas passa longe de uma grande decepção.

Tanto que Babel chega a ser exemplar na construção de algumas passagens. Em uma delas, o espectador assiste - com todas as peças no colo - ao desenrolar da história da norte-americana que recebeu o tiro acidental do jovem marroquino: o tiro acidental ganha ares de atentado terrorista, e uma crise entre dois países ameaça não só a vida da personagem baleada, como a própria economia mundial. No micro, o espectador sabe o quão aquele tiro foi acidental. No macro, políticos procuram descobrir o que pode existir atrás daquele disparo, culpando primeiro, para averiguar depois. A mesma história permite vislumbrar que não é só a polícia brasileira que bate sem provas e sem motivos. Já na trama da empregada mexicana, há um q de inocência que torna a narrativa um tanto clichê, mas é um clichê positivo porque abre o leque do tema, que vai além do fato da empregada estar errada em sua atitude (e pagar caro por isso), mas, por ser um erro menor, uma mentira do bem, que não fosse o desenrolar confuso, nada teria afetado na rotina da mulher, e das crianças. Porém, todos nós (passageiros de lotação, espectadores de cinema, torcedores de futebol em estádio) corremos o risco de um desenrolar confuso, por menos obviedade que estejamos enfrentando ao entrar numa van, ao sentar numa cadeira de cinema, ou a nos dirigirmos a um estádio para assistir a uma partida de futebol. A fatalidade está ao nosso lado, sempre. Nós não a enxergamos, e passamos por ela sem a perceber todos os dias. Iñárritu as vê, e as filma. Melhor tomar cuidado com balas perdidas, não?

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