"2046 - Os Segredos do Amor"
por Marcelo Costa
maccosta@hotmail.com
12/01/2006

Após exercitar a beleza visual e a impossibilidade romântica em Amor á Flor da Pele, o cineasta chinês Wong Kar-Wai retorna ao reino dos infelizes em 2046, fábula de quase ficção científica que empresta o personagem principal de Amor á Flor da Pele e confirma a crença do diretor de que os desencontros românticos são a regra de um mundo em que as pessoas desejam o amor, mas nunca o encontram. Assim como seu filme anterior, 2046 destaca uma fotografia esplendorosa e longos silêncios que são preenchidos por uma belíssima trilha sonora baseada em canções norte-americanas dos anos 40 e 50.

Para entrar no submundo criativo de Kar-Wai é preciso paciência e bastante atenção. O número 2046 é um emaranhado de coisas que se misturam e fazem a cama para os personagens sofredores desse drama eterno chamado amor. 2046 é o número de um quarto de hotel em que histórias de amor duram o tempo exato do ato sexual. O que resta após o ato é o desejo de um que quer ser amado (o sexo sacia o corpo, mas necessita do amor para saciar a alma) e a fuga do outro, que já amou, e exibe cicatrizes eternas de seus desejos irrealizados. Encontros que geram desencontros. A felicidade com tempo contado.

2046 é, também, o ano que guarda memórias e desejos perdidos, e só é possível chegar lá através de um trem especial futurista. No entanto, se para resgatar essas memórias é preciso ir para 2046, é impossível voltar de lá após ter resgatado seus 'pertences'. De natureza metalinguistica, porém, 2046 é - ainda - o título de um dos livros de Mo Wan Chow (Tony Leung Chiu Wai), um escritor que pensa ter escrito sobre o futuro, mas, na verdade, traduziu em palavras o passado. Entre um extremo e outro, no livro e no ano futurista, o 'passageiro' está condenado ao sofrimento dos apaixonados não correspondidos, tema básico do cinema de Kar-Wai em Amor à Flor da Pele e 2046. Ele projeta no futuro suas cicatrizes do passado.

A base da história de Kar-Wai são as várias mulheres que atravessaram a vida do escritor. A faca, afiada nos dois gumes, corta ambos os sexos. Um sequito de jovens que amam No Wan Chow é condenado ao sofrimento eterno do amor não correspondido, falso platonismo barato que lhes cede algo que na verdade elas nunca irão possuir. No Wan Chow doa seu corpo, mas não a alma. Prefere pagar pelo sexo, mesmo que simbolicamente, do que aceitar o ato sexual como uma extensão do sentimento amoroso de sua parceira. O escritor, no entanto, se dá ao luxo de brincar com os sentimentos de suas apaixonadas porque, por mais de uma vez, o destino brincou com os dele. Ele exercita um misto de vingança com auto-flagelação ancorado em quase antagonismos: "Só quem não aceita um 'não' consegue tudo o que quer", diz um personagem. Outro, à frente, contraria: "É preciso aprender a desistir". 2046 é o amor reduzido a um jogo de carteado. A felicidade na escolha de uma carta. Um livro cujo final não pode ser alterado. Uma viagem sem volta.

Kar-Wai demorou três anos para finalizar 2046, que chegou aos cinemas junto com Eros, em 2004, filme dividido entre o diretor chinês, Steven Soderbergh e Michelangelo Antonioni. 2046 também é uma referência ao último ano do período de 50 anos de auto-regulação imposto pela Inglaterra para a devolução de Hong Kong à China. Em 2046, a liberdade política e econômica da antiga colônia britânica chegará ao fim. Apesar do emaranhado de informações quase desconexas e da voluptuosidade da fotografia, o que fica de 2046 ao final da projeção é o desespero de apaixonados que nunca encontram sua verdadeira metade: "O amor é uma questão de timing: de nada vale encontrar a pessoa certa muito cedo ou muito tarde". Kar-Wai expõe pessoas que nunca chegam na hora certa e que, por isso, estão condenadas ao sofrimento romântico. Um filme trágico, mas assustadoramente real, que não versa sobre os segredos do amor, como pretensamente supõe revelar o subtítulo nacional, porque, afinal, o amor não têm nenhum segredo: quem ama, sofre.

Site Oficial de "2046"