Poucas e Boas

por Ana Cecilia Del Mônaco
28/09/2000

Emmet Ray é tosco, já foi cafetão, é mulherengo assumidíssimo, viciado em jogo, mas é o melhor guitarrista de jazz dos anos vinte e trinta. Leva a sua vida artística de maneira desleixada. Sempre chega às próprias apresentações atrasado, bêbado, quando simplesmente não chega.

Enlouquece seus empresários com seus costumes esbanjadores, enfim, faz o que quer, afinal, como ele mesmo proclama, melhor do que ele somente Django Reinheart, um guitarrista cigano, que quando toca, faz Emmet chorar. Em certa altura de sua egocêntrica vida de artista, Emmet conhece Hattie (Samantha Morton), uma garota muda, simplória, que ele, a princípio repudia, mas vai se acostumando com sua companhia e seu bom coração.

Woody Allen abusa do talento dos dois atores, que elucidam como ninguém personalidades que se tornam familiares aos espectadores. Sean Penn, como Emmet Ray (cujo personagem é uma colagem de características de jazzistas "lendários" do passado), faz um personagem instável, de caráter e emoções, que usa como explicação para sua inconstância, o fato de ser um artista, não podendo se envolver emocionalmente por causa da "carreira". Aos poucos percebemos o conhecimento e o domínio que Woody Allen tem de construção de personagens, sem maniqueísmos e muito verossímeis.

O relacionamento do guitarrista e da garota muda e submissa é hilário e nos faz chegar a certas conclusões: o artista egocêntrico só poderia amar uma pessoa como Hattie, muda, ela só ouve o que Emmet tem pra falar dele mesmo, nunca será criticado pelo seu comportamento excêntrico, apesar de, às vezes se sentir vexado por um simples olhar da namorada. Esta por sua vez, mesmo maltratada, transborda de felicidade por estar junto de um ser humano capaz de fazer música com tal sensibilidade, característica ausente em seus gestos e palavras, mas que mostram que Hattie não se apega necessariamente à linguagem das palavras...

Uma outra fase da vida do músico é mostrada e ele se encontra casado com uma elegante escritora (Uma Thurman), onde vemos então um par improvável: ela culta, mas que vive no mundo de seus personagens, e considera as pessoas que a cercam também como personagens complexos e misteriosos, querendo, por toda lei, atribuir idéias aos mesmos que são irreais. Elabora mil teorias sobre os "insights" criativos do marido, quando sua música é algo visivelmente instintivo.

Sean Penn e Samantha Morton obtiveram, respectivamente, indicações ao prêmio de melhor ator e atriz coadjuvante, tanto no Globo de Ouro como Oscar 2000.

Usando depoimentos de estudiosos do meio musical (inclusive o próprio Woody Allen, notoriamente fã de jazz e músico, aparece narrando alguns fatos) vemos um pouco da trajetória deste músico que tinha horror a "gravar" sua música, mas acabou cedendo para o deleite dos fãs do estilo. Boa parte dos relatos, por vezes, possui várias versões, sendo que muito se perdeu no tempo, ou já foi transformada em lenda do meio "jazzístico".

O filme demorou a ser lançado no país devido a uma cláusula contratual que está atrelada a todos os filmes do diretor Woody Allen, que impede seu mais novo filme de ser lançado enquanto o último ainda estiver em exibição nos cinemas, e como Celebridades ficou muito tempo em cartaz, acabou atrasando a chegada deste. O diretor é, como sempre, correto: a caracterização de época é impecável, a música é ótima e embala os sentimentos desses personagens singulares, num ritmo que nunca se perde. Divertidíssimo.

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