Todos
os problemas lá no Felicidade
por
Flavia Ballve Boudou
Você
está lá todo deprimidinho, brigou com os pais, a menina mal
sabe que você existe, o que fazer? Hein? Ir ao cinema, claro, ver
um filminho bem bacana e pra cima. Arrá! Tem um aqui, “Felicidade”,
é esse, é esse mesmo. Cheio de esperanças, lá
está você, a luz se apaga e você se arrepende de não
ter lido antes essa minha crítica.
O lance do Felicidade é o seguinte:
crueldade até o fim. O filme vai fuuuundo na ferida. O roteirista
deve ter sentado e começado a fazer uma lista: quem pode se sentir
triste depois de ver esse filme? Bom, pelo menos por um critério
etário, todas as pessoas possíveis.
Crianças, jovens adultos, casais,
velhinhos (será que ele esqueceu alguém?), todos têm
o direito de, após rirem cruelmente dos horrores pelos quais os
outros passam, poder engolir o riso sem graça e segurar aquela lágrima
perversa enquanto vêem sua própria miséria exposta
como fratura.
Vou dar uma pincelada nas personagens
(eu sou daquelas puristas que fala “as personagens” mesmo me referindo
a um faroeste), só para dar uma idéia mesmo, senão
acaba a graça do filme. Toda a história fala de uma família
– e eventualmente de personagens “por perto” - , e o filme vai acompanhando
um pouquinho cada pessoa, com tanto sarcasmo que, quando volta para mostrar
uma personagem anterior, a gente até ri, relembrando as tragédias
futuras.
São
três irmãs: Joy, a caçula, é solteira, meio
hippie, sentimental, compositora etc., e apesar da ironia do seu nome –
“alegria” – a pobre da menina não consegue ser mais do que felizinha.
Sabe aquelas pessoas que só levam porrada da vida e não conseguem
revidar? Pois é. Helen, se não me engano, é a irmã
do meio, uma escritora famosa, aparentemente
escreve aqueles romanções
barra-pesada tipo Sidney Sheldon. Toda sexy e cool (basta dizer que é
a atriz Lara Flynn Boyle, aquela lindona de Twin Peaks), ela é daquelas
que por ser muito bonita acaba se sentindo vazia, mesmo com os milhares
de homens correndo atrás dela (aaahhhh, pobre de mim que não
tenho um problema desses).
A irmã mais velha, Trish, já
é outra típica personalidade: casadinha, maridinho, dois
filhos, casinha no subúrbio, e não lembro agora, mas acho
que tem um cachorro lá também (ah, tem sim, e ele é
peça fundamental de uma das cenas no final). Com a vida bem resolvida
e tranquila que só ela (apesar de uma vida sexual nula), seu único
problema é gerenciar a vida das irmãs e dos pais, intermediando
as fofocas (ou “preocupações” , como preferem chamar).
Aí vai ficando cada vez mais
legal. Pra começar tem o marido da mais velha, que simplesmente
não transa com a mulher porque ela, digamos, não é
um menininho pré-púbere. O pobre, cheio de culpa por todas
as masturbações com revistas pré-adolescentes (saca
Backstreet Boys na capa?), ainda tem que aconselhar o filho de 12 anos
(...) sobre sexo (...), tipo “papai, eu tento tanto, mas não consigo
gozar!!!”. Uma gracinha também é a historinha dos pais das
3 irmãs. Velhinhos que não se falam nem se respeitam mais,
bem no gênero “joguei minha vida no lixo”, animador. Bom, e para
completar a trupe tem também personagens paralelos como o “loser”
que passa telefonemas obscenos e sonha com a tal escritora gostosona, uma
gorda que gosta desse loser aí e é rejeitada de todas as
maneiras possíveis etc etc...
Com as personagens, já dá
para ter uma idéia do rumo que o filme toma. É parecido com
o ritmo narrativo de “Grand Canyon”, falando sobre várias personagens
que se entrelaçam. (Estou querendo ver “Bem vindo à casa
de bonecas”, que é o filme anterior do diretor, Todd Solondz). Agora
que você leu um pouco sobre cada personagem desse filme tão
ameno,
digamos assim, deve estar pensando
“não há a menor chance de eu ver essa merda cheia de freaks”.
Peraí...
Freaks,
querido, somos todos nós. De alguma maneira você irá
se reconhecer nesse filme: você não tem namorada, ou é
amado de mais, ou acha que leva uma vidinha normal e bem casada, ou senão
é rejeitado o tempo todo e só leva porrada da vida. Você
está lá, de alguma forma. E dói pra caramba quando
a câmera muda e você vê lá na tela você
mesmo. Mesmo assim, vale a pena, porque é justamente para essa ligação
entre todos os sentimentos de inadequação do mundo que o
filme aponta. Se todo mundo é meio esquisito em última análise,
então o preconceito não faz sentido, certo? Tolerância
é a palavra chave. E também sinceridade, acho. Compaixão,
solidariedade, amizade. E, principalmente, deixar a hipocrisia de lado,
nenhuma vida é perfeitinha, e é por isso que vale a pena
viver. Então, vá ver o filme, sinta-se totalmente detonado,
e depois me conte.
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