'Dançando
no Escuro'
por
Carmela Toninelo 2001
O
título deveria ser "apaguem as luzes e vamos chorar",
mas Dançando no Escuro e sua sugestiva trilha
sonora remetem muito mais à dança, como refúgio
da personagem da história, do que às lágrimas
que caem de nossas faces, quando a última cena fecha
tudo numa completa escuridão.
Dançando no Escuro é sétima arte.
Vencedor do Festival de Cannes do ano 2000, o filme é
uma experiência ousada e destemida. Assinado por Lars
von Trier, um dos dinamarqueses fundadores do manifesto Dogma
95, a produção inspira – brilhantemente - adulação
e desdém. Juntos.
Lars, hoje, deveria ser comparado com diretores de quatro décadas
atrás como Francois Truffaut e Jean-Luc Godard, ou quem
sabe Scorsese e Altman, nos anos setenta. O trabalho do diretor
é artisticamente novo e sensacionalmente inovador. Isso,
numa mídia onde tantos diziam que inovações
era algo já morto.
A menos que você esteja vivendo sob um mundo pop rock,
do qual eu me baseio no mainstream americano, você já
sabe que Björk é a bonequinha de porcelana, cantora
islandesa, que começou sua carreira como líder
da banda Sugarcubes. Desde a morte da banda em meados dos anos
90, Björk tem criado músicas psicodelicamente dançantes,
doando seu enorme vocal talhado e dando uma curiosa visita nos
fios cortantes na aparelhagem de DJs. O resultado é uma
música suficientemente verdadeira a ser tarjada "alternativa",
e impossível não reconhecer que se encaixa no
"especial".
Em Dançando no Escuro, Björk encena Selma,
outra mártir feminina de von Trier. A história
é, antes de tudo, sobre a devoção de uma
mãe. No enredo, há assassinato, crueldades do
destino e pena de morte. Uma tragédia musical, na qual
a heroína trama em sua cabeça seqüências
musicais e coreografias, de modo que isso possa aliviar a reviravolta
que expressa-se na sua vida.
Björk se torna um marco pela atuação de Selma,
uma imigrante tcheca, morando no interior do estado de Washington,
no início dos anos 60 (o filme foi rodado na Suécia
e Dinamarca). Mora com seu filho em um trailer, trabalha como
operária numa fábrica, freqüenta uma casa
de teatro local com sua amiga, e também operária
Kathy (Catherine Deneuve, convincentemente desleixada), e consegue
até mesmo o papel de Maria na produção
amadora de The Sound of Music.
Música e cinema são os refúgios de Selma.
Ela está ficando cega (problema de família, diz
ela), e sente-se culpada por ter tido uma criança que
também carrega o gene da cegueira. Após economizar
dinheiro para uma operação que irá curá-lo,
Selma confronta-se com seu vizinho (David Morse), que a rouba
e torna seu maior sacrifício em sacrifício fatal.
Dançando no Escuro é produto 90% Dogma
95. Só falha nos musicais centrados de Björk, mas
compensa perfeitamente no trabalho de câmera. Esta não
apenas observa os personagens, como parece capturá-los
da antagonização de suas vidas e, por certo, as
fascinantes tomadas expõem ao extremo suas fragilidades.
Björk, que nunca atuou antes, está extraordinária
como Selma. Aí, eu espero que você não seja
daqueles hipócritas críticos ou consumidores de
cinema, que a viriam julgar incapaz de atuar. Comparar Björk
com Madonna, John Bon Jovi ou Whitney Huston seria um sacrilégio.
É a sua inexperiência que torna o personagem tão
espontâneo, exibindo uma impecável defesa honesta,
de um ser humano comum. Além de parecer ela, purificada
pela música.
Catherine Deneuve, que escreveu uma carta a von Trier pedindo
um papel neste filme, trabalha tocantemente com Björk.
Seu personagem oferece à Selma uma bárbara e fiel
amizade. Da mesma forma, eu imaginaria que Deneuve encorajou
Björk em tomadas mais pesadas e árduas. Assim, vê-se
uma rainha atuando em um papel secundário, e extendendo
uma amigável mão a uma novata.
Dançando no escuro é mais do que especial, estranho.
Aparte de roteiros dos quais já estamos condicionados
a esperar, o filme reconsidera o meio e nos faz pensar em nosso
mundo. E tão especial quanto o que o filme nos proporciona,
é ver que coragem e afeição está
tão comprometido com suas próprias diferenças.
Lars von Trier que nos mostre isso, mesmo que seja no escuro.
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