Música: “Songs In A&E”, Spiritualized
Jason Pierce acredita na redenção através da música. Mais de dez anos atrás, quando o britpop começava a exibir os primeiros sinais de declínio, Pierce colocou nas lojas via Spiritualized – banda que formou em 1990, assim que seu Spacemen 3 foi para o espaço – um álbum cuja capa emulava uma caixa de remédios, o CD vinha embalado tal qual um comprimido, e o encarte, como uma bula, prescrevia: “Spiritualized deve ser usado no tratamento do coração e da alma”.
“Ladies And Gentlemen We Are Floating In Space” (1997), terceiro disco do Spiritualized, bateu na quarta posição do chart britânico e vinha embalado na idéia de que o álbum havia sido feito para selar o fim de relacionamento do compositor com sua tecladista – e ex-namorada – Kate Radley, que havia se casado secretamente com Richard Ashcroft, vocalista do The Verve. Pierce nega a inspiração, mas “Broken Hearts” entrega: “Estou chorando o tempo todo/ e tenho que disfarçar com um sorriso/ Deus eu tenho um coração partido”.
“Songs In A&E” é o sexto álbum do Spiritualized, e quebra um silêncio de cinco anos sem material inédito. Jason Pierce (aka J. Spaceman) estava com o repertório do disco praticamente pronto quando foi internado em estado grave com pneumonia dupla. Apesar de grande parte das canções já estar pronta, o hospital inspirou o conceito e o título de “Songs In Accident and Emergency”, setor próximo da nossa conhecida unidade de terapia intensiva (”Songs in UTI” poderia ser um bom título nacional).
Partindo do pressuposto que a inspiração do álbum nasceu em uma cama de hospital, normal esperar que o repertório seja pesado, tristonho, carregado de referências à morte, certo. Mais ou menos. As referências até estão ali (funerais, o calor, estado de coma, visita de anjos, igrejas), mas a confrontação com a morte fez Pierce colocar os pés no chão e buscar no gospel, nas harmonias vocais, e nas orquestrações uma maneira de soar… vivo.
Para construir sua epopéia de recuperação, Pierce pincelou doze canções intercaladas por seis faixas instrumentais e fez delas pequenas sinfonias. “Sweet Talk”, a primeira, é uma faixa grandiosa de visão chapada por remédios: “Você tem a fala doce como a de um anjo, e está dirigindo este cego”, canta Pierce. “Death Take Your Fiddle”, uma das mais densas, teve a voz gravada na cama do hospital, e diz entre sons de respiração: “Acho que vou beber para entrar em coma / Mas, morfina, codeína, whisky / eles não alteram a forma como me sinto agora com a morte me rondando”.
“I Gotta Fire” rompe o drama da faixa anterior com guitarras que lembram Primal Scream e BRMC e é a primeira das três faixas seguidas do álbum que trazem o fogo como elemento visual. A seguinte, “Soul On Fire”, é o primeiro single. Co-escrita por Daniel Johnston, a canção traz um refrão tão lírico, tão rico em melodia que poderia ser estendido até o final do álbum que ficaria tudo bem. Só imagine a cena: “Começou um furacão em minhas veias e eu quero que fique para sempre”. Respiração profunda. “Sitting on Fire”, movida a violões preguiçosos, também foi registrada na cama do hospital.
O silêncio é quebrado novamente pelos rocks. “Yeah Yeah” lembra algo de Bob Dylan enquanto “You Lie You Cheat” clama por liberdade em clima de garage rock. “Baby, I’m Just A Fool” é o épico do álbum com seus mais de sete minutos de duração (o solo de órgão, no meio da canção, é de chorar). Seguem-se a baladaça “Don’t Hold Me Close”, a espacial “The Waves Crash In” (com seu arranjo encantador), a estranha “Borrowed Your Gun” (suave como um sonho… ou um pesadelo: “Papai, me desculpe / Peguei emprestado sua arma de novo / E atirei em mamãe / A bela mamãe”) e, pra fechar, “Goodnight Goodnight”, balada acústica de ninar apaixonados, loucos ou doentes.
Jason Pierce acredita na salvação através da música. Seja pelo mal do amor, seja por pneumonia dupla, ele limpa as lágrimas do rosto com melodias encantadoras, e faz sonhar inspirado em Phil Spector e Brian Wilson, gospel e rock. “Songs In A&E” não avança no território aberto por “Ladies And Gentlemen We Are Floating In Space” (1997) e ampliado em “Let It Come Down” (2001), mas é um excelente contraponto a fúria de boa parte de “Amazing Grace” (2003). Sobretudo, cumpre uma função já proposta anos e anos atrás pela própria banda: é perfeito no tratamento do coração e da alma. O próprio paciente J. Spaceman que o diga.
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