Mostra de SP: “I’m Not There”
“I’m Not There”, Todd Haynes – Cotação 5/5
Os sessenta anos – completados em 2001 – abriram o coração de Bob Dylan para o mundo. Até então pouco se sabia da vida do mais importante intérprete e compositor da língua inglesa no século 20. Fofocas de amigos, boatos de bastidores, depoimentos em entrevistas, aparições na TV, tudo servia para moldar um Bob Dylan que poderia até estar longe da realidade, mas era o máximo que fãs, jornalistas e pessoas comuns conseguiam obter para tentar entender uma das personas geniais e controversas de nosso tempo. O verdadeiro Bob Dylan se escondia em algum recanto da alma de Robert Allen Zimmerman, um garoto nascido em Minnesota, neto de imigrantes judeus-russos.
Em questão de cinco anos Dylan abriu seu baú de memórias e começou a mostrar fotografias de seu passado para o grande público. Foi assim com o lançamento do livro “Down the Highway: The Life of Bob Dylan”, excelente biografia assinada por Howard Sounes, que chegou ao mercado em 2001 (no Brasil recebeu o nome de “Dylan: A Biografia”, ganhando edição pela Conrad). Na seqüência, em 2005, vieram o volume 1 de “Crônicas” (uma quase biografia escrita pelo próprio Dylan que relembra o passado em textos curtos – edição nacional da Planeta) e o imperdível documentário para a TV “No Direction Home”, de Martin Scorsese (já disponível em DVD). Por último surgiu o álbum “Modern Times” (2006), cujo fantasma da morte presente nas letras meio que justificou a abertura do baú: Dylan quer rever sua história… vivo.
“I’m Not There”, filme de Todd Haynes que funciona como uma inteligente cinebiografia, é o mais próximo que o público já chegou de Bob Dylan em todos estes anos. E é grandioso como deveria ser. O subtítulo do filme diz tudo: “Inspirado nas várias vidas de Bob Dylan”. Para isso, o diretor dividiu a persona do Dylan em seis personagens, e todos eles transitam por “I’m Not There” à vontade. Seja o Dylan dos primeiros anos interpretado por Christian Bale; seja o Dylan que mudou o mundo em 1965 interpretado por Cate Blanchett; seja o Dylan menino interpretado por Marcus Carl Franklin; seja o Dylan católico interpretado por Heath Ledger; seja o Dylan apaixonado por Rimbauld interpretado por Ben Whishaw; seja o Dylan Billy The Kid interpretado por Richard Gere. É preciso conhecer a história do compositor para entender 70% do filme (no mínimo), e esse é seu único defeito: ter sido feito especialmente para fãs.
Não que neófitos venham a desdenhar “I’m Not There”, pelo contrário, mas é que Todd Haynes pula alucinadamente de uma história para outra carregando nas citações como se estivesse fazendo um documentário, e isso faz com que muito da graça do roteiro funcione como piada interna. Quantos vão perceber que a personagem de Julianne Moore, Alice, é na verdade Joan Baez, cantora e compositora com quem Dylan se envolveu no início da carreira? Ou vão entender a genial sacada do diretor ao colocar Cate Blanchett no palco de um festival folk com uma banda que metralha a audiência enquanto toca suas canções? Ok, os fatos estão todos em livros de histórias da música pop e não dá para ficar esperando por alguma tradução – seria pedir demais para Todd Haynes fazer isso. O conselho – para neófitos – é ver, rever e juntar “I’m Not There” com “No Direction Home” e “Don’t Look Back”, de D.A. Pennebaker (1967). A diversão – garantida – pode ser ampliada e muito melhor digerida.
Tudo isso porque “I’m Not There” nos coloca diante da vida do homem que primeiro virou ídolo da esquerda norte-americana amparado em uma paixão por Woody Guthrie para em seguida eletrificar o folk, virar grande estrela do rock, persona non-grata do pessoal do folk, influenciar os Beatles (e a Tropicália), dar um grande nó na cabeça de toda uma geração, sumir do mapa após um mal explicado acidente, retornar as grandes turnês depois de oito anos distante dos palcos, render-se ao cristianismo, renegar Deus, e sobreviver a tudo isso. É mais do que cem pessoas juntas fazem em uma vida toda. Bob Dylan, assim como diversos dos poetas que admira, já leu todos os livros e descobriu que a carne é triste. Porém, mesmo com esse apanhado de informações que surgiu sobre o compositor nos últimos anos – todas com sua autorização – nada consegue penetrar sua alma. O público tem o corpo (há até uma autopsia em uma das cenas de “I’m Not There” que reforça a idéia de que mesmo vasculhando seu interior não encontramos seu espírito, aquilo que faz dele Bob Dylan), e só o corpo.
Mesmo assim os seis Dylans estão impagáveis e trazem momentos memoráveis. O jovem Marcus Carl Franklin encanta carregando seu violão que estampa a frase “essa máquina mata fascistas”; Christian Bale empresta seu rosto para a arte de algumas capas; as intervenções de Ben “Arthur Rimbauld” Whishaw são precisas, mas quem se sai melhor é Cate Blanchett, perfeita como o Dylan chapado que provoca a Inglaterra acompanhado da The Band, apresenta os Beatles à maconha, ganha a “absolvição” de Allen Ginsberg (que diz que se Dylan se vendeu para fazer música para jukeboxes não havia problema algum porque todos se beneficiavam), sarreia jornalistas em uma entrevista coletiva (para depois ler as reportagens e dizer: “Ainda bem que eu não sou eu”) e cultiva a ira de um badalado jornalista da BBC. Blanchett saiu de Veneza com o Copa Volpi de Melhor Atriz. Parece que tem indicação ao Oscar pintando por ai.
Todd Haynes explora questões centrais que sempre viveram no cerne da vida de Bob Dylan: o crescimento musical que não renega o conhecimento empírico; a busca pela transformação (futuro) sem a perda dos princípios básicos (passado); e o confronto moral de praticar arte, inseri-la no mundo, e não se transformar em objeto de si mesmo. Todas essas questões estão soltas de forma conexa em “I’m Not There”. Por mais que cada um dos seis personagens tenha um espaço/tempo diferente do outro, Haynes mantém o pulso firme de forma a dar uma unidade para a obra, e o consegue com louvor. Como já escreveu um jornalista, “de uma hora para outra todas as cinebiografias ficaram ultrapassadas”. E tinha que ser Bob Dylan a inspiração disso, mesmo que ele não está ali.
Leia também: “No Direction Home”, por Marcelo Costa
“Não dá para ser esperto e amar ao mesmo tempo”, diz Bob Dylan em certo trecho do documentário No Direction Home. Com a frase, Dylan tentava explicar a implosão do relacionamento com a cantora Joan Baez, também entrevistada para o filme. Uma corruptela do pensamento do cantor poderia também dizer que não dá para ser genial e amado ao mesmo tempo”. (Continua)
0 comentário
Faça um comentário